terça-feira, 2 de setembro de 2008

CARTA DA JUVENTUDE DO MNU - SÃO PAULO

CARTA DA JUVENTUDE DO MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO - SP SOBRE OS PROCESSOS DO ENJUNE, FONUNE E CONJUNTURA EM QUE ESTÃO INSERIDOS.
"Assim, numa breve definição, a Consciência Negra é, em essência, a percepção pelo homem negro da necessidade de juntar forças com seus irmãos em torno da causa de sua atuação". (Steve Bantu Biko).
A juventude do MNU no Estado de São Paulo, ciente da responsabilidade que carrega ao representar uma entidade com 30 anos de história, utiliza-se deste documento para se manifestar sobre os processos do ENJUNE, FOJUNE e a conjuntura em que os mesmos estão inseridos.
O MNU
"O MOVIMENTO NEGRO Unificado – MNU – é uma organização política de articulação e defesa dos interesses das negras e dos negros no Brasil. Tem se guiado pelo permanente combate ao racismo, na luta pela superação das desigualdades que atingem os descendentes de africanos, posicionando- se sempre de forma autônoma, denunciando os ardis da sociedade racista brasileira e agindo de forma propositiva nos debates com variados setores da sociedade.
O MNU ainda mantém o caráter revolucionário que caracterizou sua fase embrionária, contestando a ordem política, econômica e cultural constituída há cinco séculos pela elite branca brasileira. Esta, através do aparelho do Estado, tem criado políticas que asseguram o protagonismo dos valores civilizatórios europeus, subjugando a população negra a uma situação de extrema exclusão".
(O Triunfo de Prata, MNU, Bahia, 2005)
Um pequeno passeio pela história.
Em 18 de junho de 1978, após diversas reuniões articuladas com diferentes organizações do MOVIMENTO NEGRO, foi decidida a fundação do MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL (MNUCDR). Essa decisão foi tomada com o objetivo de mobilizar e organizar, de norte a sul do Brasil, o maior número possível de organizações negras com vistas a denunciar a discriminação racial e a repressão policial.
Foi então, que no dia 7 de julho de 1978, em uma manifestação histórica, o MOVIMENTO UNIFICADO convidou os ativistas do MOVIMENTO NEGRO e pessoas sensíveis à causa dos descendentes de africanos para a sua primeira atividade pública: um ato contra o racismo, que reuniu mais de três mil pessoas, em frente às escadarias do Teatro Municipal, no Centro da cidade de São Paulo. O MNUCDR, rebatizado em dezembro de 1979 durante o seu 1º. Congresso realizado no Rio de Janeiro passa a chamar-se de MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO (MNU) nome que conserva até hoje.
A partir da fundação do MNU, o MOVIMENTO NEGRO vai se nacionalizando. O discurso de denúncia ao racismo toma novo fôlego, fortalecendo- se e influenciando nos rumos da luta contra a discriminação racial e pela inclusão. Já no inicio da década de 1980, multiplicam- se as diversas organizações e grupos negros. A questão étnico/racial passa a ser vista como um dos impasses nacionais a serem solucionados para a construção de um novo país. A questão do racismo, da dívida histórica, da falsa democracia racial e do significado da Abolição; passam a ser tema de discussões e estudos.
É importante ilustrar aqui a alcance da luta negra neste país. Uma breve consulta as reivindicações do MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO, nos seus trinta anos, dá uma idéia de sua abrangência. Em primeiro lugar, o MNU recusou a data oficial de celebração da incorporação dos negros à nação brasileira, o 13 de maio, data da abolição da escravidão, passando a festejar o 20 de novembro, dia da morte de Zumbi, que chefiou a resistência do quilombo dos Palmares em 1695; em segundo lugar, passou a reivindicar uma mudança completa na educação escolar, de modo a extirpar dos livros didáticos, dos currículos e das práticas de ensino os estereótipos e os preconceitos contra os negros, instilando, ao contrário, a auto-estima e o orgulho negros; em terceiro lugar, exigiu uma campanha especial do governo brasileiro que orientasse a população negra (pretos e pardos) de modo a se declarar "preta" nos censos demográficos de 1991 e 2000; em quarto lugar, reclamou e obteve a modificação da constituição para transformar o racismo em crime inafiançável e imprescritível, tendo, posteriormente, conseguido passar legislação ordinária regulamentando o dispositivo constitucional; em quinto lugar, articulou uma campanha nacional de denúncias contra a discriminação racial no país, pregando e alcançando, em alguns lugares, a criação de delegacias especiais de combate ao racismo.
"Há 30 anos o MNU atua amplamente no debate político nacional, transformando as agendas das instituições, dos partidos, sindicatos, gabinetes, agremiações, centros acadêmicos, do próprio Palácio do Planalto, enfim, em toda sorte de espaços, dentro e fora do Estado. Derrubamos o véu de mentiras que encobria o racismo sob a falácia da "democracia racial". O MNU é o carrasco da democracia racial e seu coveiro". (O Triunfo de Prata, MNU, Bahia, 2005).
Juventude Negra
"Seja pacífico, seja cortês, obedeça às leis, respeite a todos; mas se alguém colocar as mãos em você, mande-o para o cemitério". (Malcolm X)
É vergonhosa a forma como os jovens negros brasileiros são tratados. TODOS os indicadores sociais apontam os jovens negros como base da pirâmide social. Somos as vitimas preferenciais de todos os tipos de violência, não temos acesso a educação de qualidade, o mercado de trabalho nos trata como reserva de mercado, nossas expressões culturais são marginalizadas, somos tidos como massa de manobra por grupos econômicos e políticos, inclusive da esquerda.
O combustível para o radicalismo é oferecido pelo próprio Estado brasileiro, onde os jovens pretos se tornam reféns, sendo caçados, perseguidos, afrontados, destratados, detidos, marginalizados e assassinados diuturnamente, a prova disto nos é esfregada na cara cotidianamente. O Estado e o Capital branco apropriam-se de toda nossa produção em todos os níveis, no trabalho agrícola, na produção industrial, nas relações comerciais, na manufatura artesanal e mesmo na produção cultural.
"Diz-se correntemente que o racismo é uma chaga da humanidade. Mas é preciso que não nos contentemos com essa frase. É preciso procurar incansavelmente as repercussões do racismo em todos os níveis de sociabilidade". (Frantz Fanon)
Até hoje somos tratados como homens e mulheres invisíveis, relegados, em sua maioria ao lugar que nos foi reservado, na maioria dos casos em funções de baixo escalão. Apenas poucos entre os milhões que compõem o nosso povo, neste país-cativeiro, conseguem escapar desta lógica sinistra. Mesmo assim, além das já conhecidas desculpas oficiais, ouvimos o que hoje já se tornou chavão: "Aos poucos estamos chegando lá".
O poder da polícia, dos meios de comunicações e da política de cooptação, através de seu poder de calar, convencer e comprar; levam vários dos nossos irmãos a fazer o trabalho sujo de nos intimidar, agindo diversas veses como capitães do mato, minando nossos anseios. A indignação, a revolta, o ódio, a humilhação e a magoa, não são apenas sentimentos isolados das vitimas diretas das forças acima citadas. Milhões de irmãos e irmãs, no Brasil e no mundo estão potencialmente prontos para admitirem que não estão satisfeitos e tem motivos de sobra para não serem simpáticos. É crescente a fúria contra este Estado que escandalosamente nos oprime, e perceptível o anseio no sentido da construção de um Estado em que sejamos não somente livres, mas efetivamente independentes.
"Para isso, é preciso destruir os seus sistemas de referência. A expropriação, o despojamento, a razia, o assassínio objetivo, desdobram-se numa pilhagem dos esquemas culturais ou, pelo menos, condicionam essa pilhagem. O panorama social é desestruturado, os valores ridicularizados, esmagados, esvaziados". (Frantz Fanon)
ENJUNE - FOJUNE
"Sei que estamos nessa luta por um tempo indeterminado, que não vamos resolver esse problema nem hoje nem amanhã. Portanto, temos que aprender a manter a alegria, mesmo quando enfrentamos grandes dificuldades". (Ângela Davis)
O sangue dos guerreiros quilombolas que corre em nossas veias, nos leva a constantes momentos de insurreição, o processo de organização do ENJUNE e a consolidação do FOJUNE se mostram como tentativas de organizar e promover novas alternativas no contexto étnico-racial. Os jovens, elementos da vanguarda da luta étnico-racial, estão construindo e conquistando efetivamente seu espaço, em uma batalha muitas vezes silenciosa.
O ENJUNE cumpriu o seu papel de promover o encontro das diferentes concepções de juventudes negras, sistematizar suas principais demandas e propostas e dar o passo inicial em relação à criação do Fórum Nacional de Juventude Negra.. Fora dos centros hegemônicos de produção de grandes encontros nacionais, propiciou a interlocução não apenas de juventudes de estados e regiões diversas, mas de concepções políticas, culturas e conhecimentos teóricos e empíricos diferentes.
A organização e o lançamento político do FORUM NACIONAL DA JUVENTUDE NEGRA e sua repercussão nacional nos leva a acreditar ser este o momento de utilizarmos esta frente de luta nacional como ferramenta reivindicatória e de intervenção efetiva. É necessário avaliarmos seriamente qual o percurso político que desejamos para o FOJUNE e principalmente qual tipo de relação interna que queremos construir entre os diversos grupos de jovens negros que compõem o FÓRUM.
São nestes momentos que devemos refletir e analisar as boas lições que herdamos de nossos grandes pensadores, Steve Biko nos dá algumas pistas:
"... O que se deve ter sempre em mente é que:
1. Somos todos oprimidos pelo mesmo sistema;
2. Ser oprimidos em graus diferentes faz parte de um propósito deliberado para nos dividir não apenas socialmente, mas também com relação às nossas aspirações;
3. Pelo motivo citado acima, é preciso que haja uma desconfiança em relação aos planos do inimigo e, se estamos igualmente comprometidos com o problema da emancipação, faz parte de nossa obrigação chamar a atenção dos negros para esse propósito deliberado;
4. Devemos continuar com nosso programa, chamando para ele somente as pessoas comprometidas e não as que se preocupam apenas em garantir uma distribuição eqüitativa dos grupos em nossas fileiras.
Esse é um jogo comum entre os liberais. O único critério que deve governar toda nossa ação é o compromisso."
(Steve Bantu Biko).
DISPUTAS
"Estamos por nossa própria conta". Esta é a idéia da qual negros, em vários pontos do mundo, partiram para estabelecer a própria libertação. É também uma idéia gerada pela constatação de que a organização independente do negro resulta dos empecilhos colocados por todo espectro de forças políticas que atuam na sociedade". (Programa de ação, MNU, Belo Horizonte, 1990).
Acerca das disputas, diferenças e atritos que ocorreram nos processos do ENJUNE e FOJUNE é preciso, mais uma vez, nos remetermos a experiência histórica e lembrar que dentre as terríveis atrocidades dos assassinos que administravam o Tráfico Transatlântico de Escravos, uma das mais perversas foi a criação de estratégias de divisão dos reinos e nações africanas, com o intuito já clássico na época de "dividir para conquistar". Esta estratégia foi utilizada também nas Colônias, onde existia esta mesma preocupação, que os levava a colocar preferencialmente, em uma mesma fazenda, africanos de diferentes línguas e culturas; com o intuito de dificultar a organização e impedir levantes. Muito desta estratégia funcionou, mas o espírito e a cultura africana sobressaíram- se em diversos momentos, a exemplo das diversas insurreições e a disseminação de inúmeros Quilombos. Infelizmente, algumas destas estratégias persistem até hoje, e vemos, diuturnamente, situações em que nos voltamos contra nos mesmos. Um exemplo atual e extremamente gritante foi a realização das duas Marchas, em 16 e 22 de novembro, que apesar de possuírem praticamente as mesmas metas e objetivos, sofreram forte influencia de fatores externos que contribuíram profundamente para o acontecimento deste "racha". Diante desta conjuntura, uma das alternativas colocadas durante o processo do ENJUNE foi a da desconstrução desta lógica das divisões e da construção de um projeto coletivo, que objetive propostas e ações concretas para o combate ao racismo e a promoção da igualdade de oportunidades. Contudo nos momentos de discussão política, geralmente tensos, nos deixamos levar e tomamos atitudes por vezes questionáveis. Isso vale para todos, independentemente do nível intelectual ou de compreensão política.
"Não acredito que um relacionamento puro tenha de terminar sempre em violência. Não acredito que tenhamos de ser fraudulentos e simuladores; porque esta é a fonte das dificuldades futuras do fracasso. Se projetarmos imagens fraudulentas e simuladas, ou se fantasiarmos um ao outro em caricaturas destorcidas de que realmente somos, então, quando acordarmos do transe e olharmos além da falsidade e das aparências, tudo se dissolverá, tudo morrerá e se transformará em rancor e ódio". (Edridge Cleaver).
É importante ressaltar que o MNU acredita sim que os negros e negras tem de estar em todos os lugares, esta foi uma bandeira que nasceu no interior desta organização e se apresenta nos seus documentos-base. O programa de ação de nossa entidade nos orienta da seguinte forma: "o MNU deverá orientar a atuação de seus militantes nas Associações de Moradores , de profissionais , nos Diretórios Acadêmicos , nos Sindicatos e Partidos Políticos, na perspectiva de multiplicar as adesões ao seu Projeto Político de médio e longo prazos". Com efeito, qualquer alegação que venha a insinuar que o MNU faz um discurso contrário se mostrará completamente equivocada. Da mesma forma, programa de ação do MNU afirma que a independência do MOVIMENTO NEGRO não pode ser entendida apenas em relação aos demais setores organizados da sociedade. É preciso encarar as contradições internas existentes no conjunto do MOVIMENTO NEGRO como algo indiferenciado do ponto de vista político.
De fato, queremos que os negros ocupem os espaços políticos, porém acreditamos que, uma vez nesses espaços, é fundamental que se cumpra o seu papel e realize as disputas necessárias para ocupar as direções e não simplesmente se contente em ser base ou ocupar postos de terceiro ou quarto escalões. Hoje, é prioridade organizar o negro onde ele vive, construir suas formas organizativas, construir o seu movimento.
Em seu artigo, "A dissimulação do branco de esquerda", o jovem negro Lourenço Cardoso, nos alerta:
"O branco de esquerda, além dos votos, insiste para que o negro entre em seus partidos, entidades, ONGs, associações para submeter o negro as suas idéias e direção. Eldridge Cleaver teorizou que o branco, simbolicamente, considera: "O negro como corpo e o branco como cérebro: o corpo deve ser submetido ao cérebro" ("Alma no exílio" pp. 152-3). O branco procura submeter o negro, aceita que o negro vá longe "torne-se ministro", jamais assumir o poder principal."
O que efetivamente esperamos é que os militantes que ocupem esses espaços, o façam carregando não apenas a identidade do MOVIMENTO NEGRO, mas principalmente suas determinações e seu compromisso histórico com o povo negro – possuam, de fato, a autonomia para dar condição à luta. Se essa autonomia for ameaçada ou questionada pelas forças político partidárias, então caberá a cada um de nós a atitude necessária para enfrentar estes espaços. Vale lembrar que são vários os meios para efetivar a luta, Malcolm X fez essa afirmação há 45 anos atrás.
"E eu tinha total consciência de que poderia influenciar a vida Política sem estar em um partido. Aliás, a condição é não estar. Não estar é também uma convicção e uma estratégia. Porque estando, dificilmente pode-se dizer o que se pensa" (Milton Santos).
A luta da juventude negra, indiscutivelmente, parte indissociável do MOVIMENTO NEGRO, já ocupa um lugar histórico na luta pela libertação do povo negro. As importantes participações em espaços de discussão nacionais e internacionais demonstram que nossa capacidade de luta e organização vem sendo pautada por um olhar afrocentrado, que busca a superação das diversas formas de dominação e exploração a que fomos e estamos sendo submetidos em África e na diáspora.
A juventude negra tem um papel muito particular na história de luta do MOVIMENTO NEGRO. Neste momento de reorganização é importante que estejamos atentos para as armadilhas que se avizinham e que certamente tentarão frustrar nossos projetos. Temos grandes desafios a superar, o primeiro certamente é garantir que continuemos vivos para dar continuidade a luta, neste sentido foi apontado a efetivação da CAMPANHA CONTRA O EXTERMINIO DA JUVENTUDE NEGRA. Também é importante que reunamos as ferramentas e meios necessários para enfrentar essa luta, e dessa forma apontamos a necessidade de estratégias de formação e de acesso a formação acadêmica. Outras demandas também foram levantadas, todas apontando para a superação das desigualdades e do racismo. A construção de estratégias para dar prosseguimento a luta constitui um desafio admirável, porém, acreditamos que a juventude negra militante esteja disposta a enfrentar estes desafios de frente.
A juventude do MNU tem plena consciência de sua responsabilidade com o MOVIMENTO NEGRO e com o povo negro. Sabe que deverá honrar a história da organização e cumprir um importante papel na luta de libertação do povo negro. Diante disso, não irá descansar ou titubear em momento algum, ao contrario, se fará sempre presente e disposta a enfrentar o que for preciso para garantir as bandeiras históricas do MOVIMENTO NEGRO.
"Portanto, quanto mais gente se unir, quanto mais unidos estivermos, nós correspondemos àquilo que todo o mundo sabe e que é: a união faz a força. Se eu tirar um palito de fósforos e o quiser quebrar, quebro-o rapidamente; se juntar dois, já não é tão fácil, três, quatro, cinco, seis, chegará um dado momento em que não poderei quebrar". (Amílcar Cabral).

Nenhum comentário: