Fotografias de Márcia Guena
Curadoria Marcelo Reis
Sankofa: retornar e aprender com o passado.
Márcia Guena*
Quando não escrevo, estou vivendo. Vivi.
Assim foi iniciado meu diário de viagem, no dia 28 de agosto de 2000, coincidentemente, dia e mês da abertura desta exposição.
Vivi durante um mês o que necessitava. Fui conhecer o continente de meus familiares. O começo da história do povo africano no Brasil. Ao contrário do que indicam os livros didáticos, a nossa história não começa na senzala. A escravidão do povo africano nas Américas marca um período cruel na trajetória do povo africano, mas não é o princípio. Os primeiros registros da presença do homem estão na África, o continente que ensinou muito ao resto do mundo sobre arte, medicina, astronomia e matemática, como registrou a pesquisadora Elisa Alarkin no livro Sankofa.
Sankofa é um dos ideogramas utilizados pelo sistema de escrita Adinkra, que compunha as várias formas de expressão escrita existentes na antiga África, utilizado pelos povos Akan, da África Central. Os ideogramas são impressos no vestuário, em objetos e em adereços.
Sankofa significa "volte e pegue", ou retorne e aprenda com o passado, como compreendi e utilizei. Assim como nós reivindicamos este símbolo, ele já foi apropriado por outras entidades do movimento negro e tem sido largamente reivindicado por outras tantas. Trata-se, na realidade, de metalinguagem, o símbolo significando a ele mesmo. Sankofa também foi mote da Exposição de Abdias Nascimento 90 Anos: Memória Viva, realizada em Brasília.
Fui à África reivindicar minha nacionalidade: senegalesa, egípcia, angolana...A viagem ajudou a responder muitas coisas. Fui buscar, no Senegal, explicações para a alma dos homens e das mulheres da diáspora brasileira.
"A porta do não retorno", nome dado a última porta da "Casa dos Escravos", que desemboca no mar, último porto para africanos de nacionalidades diversas enviados para as Américas, é a que melhor traduz, no seu avesso, esta exposição: retornamos, como recomenda Sankofa. Localizada na Ilha de Goré, uma extensão de terra situada a 20 minutos de barco da capital Dakar, a Casa dos Escravos, transformada em museu, ainda guarda as balanças nas quais eram pesados homens, mulheres e crianças. Nossos familiares que sobreviveram à travessia e não passaram outra vez por aquela porta. Ecos de nossa ancestralidade localizada em Gore, Dakar, Senegal
Em um mês de viagem percorri grande parte do país, documentando instantes e reconhecendo gestos, falas, formas de caminhar, sorrisos. De colonização francesa, o Senegal possui o francês como língua oficial, mas são as línguas maternas que se escutam nas feiras, nos pontos de ônibus e dentro das casas. Fora da capital não se fala francês. Cerca de 40% da população pertence ao grupo linguístico uolof, como indica o site oficial do governo do Senegal. Mas vários outros idiomas estão presentes no país compondo o caldeirão lingüístico: lebu, serere, toucouleur, diola, mandinga, bassari, bedinké e dialonké.
Em Dakar permaneci 10 dias, seguindo rumo ao nordeste: Bakel, cantada nas músicas do Ilê Aiyê. A travessia do Rio Senegal, ao lado dos hipopótamos, ou mali, como o chamam todos ali, permitiu o contato com moradores de várias cidades e um convite para conhecer o outro lado do rio. Na outra margem, a cidade de Diogountoro, na Mauritânia. Novas falas e muito aconchego. Duas noites de muita conversa, ou de muito ouvir, pois a língua era o Soninke , mais desconhecida ainda para mim do que o popular uolóf.
De volta para dentro do país. A próxima parada foi Tambacounda, um parque, localizado no centro do país, que abriga grandes animais. Mas no final, encontrei pessoas, festas, comidas, acolhidas, danças e muita ternura no olhar.
Em direção ao sudeste percorri a cidade de Keduougou. Novas acolhidas fraternas em meio à natureza tranqüila e muito verde. Cada despedida uma descoberta e uma fissura.
Rumo ao sudoeste. Ali está a conflituosa Camasamance. Os Diola, povo de poucas palavras que habita a região, lutam pela sua independência desde que os colonizadores franceses os separaram dos demais membros desta etnia. Foram cindidos ao meio, esse recorte cartesiano que marcou a colonização européia na África. Cartesiana como a cabeça dos brutos. Uma parte ficou no território do Senegal e outra mais ao Sul, na atual Guiné Bissau. Os Diola de fato se sentem separados da nação senegalesa pois eles foram isolados por outro país: Gâmbia, uma faixa estreita de terra que divide Senegal em dois, separando a grande maioria uolof, ao Norte, dos Diola, ao sul.
Ecos de Dakar pretende buscar a nós mesmos na população do Senegal. Um pequeno retrato dos gestos e olhares do que somos. Um pequeno retrato do ser negro.
Para melhor compor os instantes revelados nas imagens de Ecos de Dakar, Marcelo Reis, curador e diretor desta exposição, e eu optamos por utilizar como legendas passagens do diário escrito por mim durante a viagem. O diário se comunica com a imagem quando revela impressões que não poderiam ser reescritas hoje, tais como os flagrantes revelados pelo obturador.
A trilha sonora é de autoria de Youssou N`Dour, um dos mais populares cantores e compositores senegaleses. Nos primeiros dias que estive em Dakar fui a um show dele em um estádio de futebol. Lotado, todos aguardaram durante horas a chegada do astro, já bastante conhecido na Europa e nas Américas. Foram mais de quatro horas de espera, com várias outras atrações. A sua entrada foi semelhante à sempre anunciada entrada do inesquecível James Brown em seus shows. Valeu a espera. Muita dança e alegria, como aconteceria durante toda a vigem. Uma música alegre, com belos arranjos e uma harmonia perfeita. Youssou N`Dour canta o panafricanismo: uma África livre, unida para todos os africanos espalhados pelo mundo.
Nesta viagem ao Senegal percebi que as ligações de um povo com outro não se manifestam apenas em elementos objetivos como a língua e a culinária, por exemplo, mas também na subjetividade inerente do gesto. Um olhar, um sorriso, uma forma de descansar a mão no colo, de apoiar o rosto. Ou mesmo nas formas do corpo. É como identificar no outro a si mesmo através de um giro leve da cabeça, que conduz o olhar para outra direção: identidades africanas.
Fonte consultada: http://www.planalto.gov.br/seppir/informativos/images25_ago2006/materia4.htm
*MÁRCIA GUENA é jornalista e mestre em Integração na América Latina, títulos obtidos na Universidade de São Paulo; professora das Faculdades Jorge Amado e doutoranda em História das Américas pela Universidade Complutense de Madrid.
Curadoria Marcelo Reis
Sankofa: retornar e aprender com o passado.
Márcia Guena*
Quando não escrevo, estou vivendo. Vivi.
Assim foi iniciado meu diário de viagem, no dia 28 de agosto de 2000, coincidentemente, dia e mês da abertura desta exposição.
Vivi durante um mês o que necessitava. Fui conhecer o continente de meus familiares. O começo da história do povo africano no Brasil. Ao contrário do que indicam os livros didáticos, a nossa história não começa na senzala. A escravidão do povo africano nas Américas marca um período cruel na trajetória do povo africano, mas não é o princípio. Os primeiros registros da presença do homem estão na África, o continente que ensinou muito ao resto do mundo sobre arte, medicina, astronomia e matemática, como registrou a pesquisadora Elisa Alarkin no livro Sankofa.
Sankofa é um dos ideogramas utilizados pelo sistema de escrita Adinkra, que compunha as várias formas de expressão escrita existentes na antiga África, utilizado pelos povos Akan, da África Central. Os ideogramas são impressos no vestuário, em objetos e em adereços.
Sankofa significa "volte e pegue", ou retorne e aprenda com o passado, como compreendi e utilizei. Assim como nós reivindicamos este símbolo, ele já foi apropriado por outras entidades do movimento negro e tem sido largamente reivindicado por outras tantas. Trata-se, na realidade, de metalinguagem, o símbolo significando a ele mesmo. Sankofa também foi mote da Exposição de Abdias Nascimento 90 Anos: Memória Viva, realizada em Brasília.
Fui à África reivindicar minha nacionalidade: senegalesa, egípcia, angolana...A viagem ajudou a responder muitas coisas. Fui buscar, no Senegal, explicações para a alma dos homens e das mulheres da diáspora brasileira.
"A porta do não retorno", nome dado a última porta da "Casa dos Escravos", que desemboca no mar, último porto para africanos de nacionalidades diversas enviados para as Américas, é a que melhor traduz, no seu avesso, esta exposição: retornamos, como recomenda Sankofa. Localizada na Ilha de Goré, uma extensão de terra situada a 20 minutos de barco da capital Dakar, a Casa dos Escravos, transformada em museu, ainda guarda as balanças nas quais eram pesados homens, mulheres e crianças. Nossos familiares que sobreviveram à travessia e não passaram outra vez por aquela porta. Ecos de nossa ancestralidade localizada em Gore, Dakar, Senegal
Em um mês de viagem percorri grande parte do país, documentando instantes e reconhecendo gestos, falas, formas de caminhar, sorrisos. De colonização francesa, o Senegal possui o francês como língua oficial, mas são as línguas maternas que se escutam nas feiras, nos pontos de ônibus e dentro das casas. Fora da capital não se fala francês. Cerca de 40% da população pertence ao grupo linguístico uolof, como indica o site oficial do governo do Senegal. Mas vários outros idiomas estão presentes no país compondo o caldeirão lingüístico: lebu, serere, toucouleur, diola, mandinga, bassari, bedinké e dialonké.
Em Dakar permaneci 10 dias, seguindo rumo ao nordeste: Bakel, cantada nas músicas do Ilê Aiyê. A travessia do Rio Senegal, ao lado dos hipopótamos, ou mali, como o chamam todos ali, permitiu o contato com moradores de várias cidades e um convite para conhecer o outro lado do rio. Na outra margem, a cidade de Diogountoro, na Mauritânia. Novas falas e muito aconchego. Duas noites de muita conversa, ou de muito ouvir, pois a língua era o Soninke , mais desconhecida ainda para mim do que o popular uolóf.
De volta para dentro do país. A próxima parada foi Tambacounda, um parque, localizado no centro do país, que abriga grandes animais. Mas no final, encontrei pessoas, festas, comidas, acolhidas, danças e muita ternura no olhar.
Em direção ao sudeste percorri a cidade de Keduougou. Novas acolhidas fraternas em meio à natureza tranqüila e muito verde. Cada despedida uma descoberta e uma fissura.
Rumo ao sudoeste. Ali está a conflituosa Camasamance. Os Diola, povo de poucas palavras que habita a região, lutam pela sua independência desde que os colonizadores franceses os separaram dos demais membros desta etnia. Foram cindidos ao meio, esse recorte cartesiano que marcou a colonização européia na África. Cartesiana como a cabeça dos brutos. Uma parte ficou no território do Senegal e outra mais ao Sul, na atual Guiné Bissau. Os Diola de fato se sentem separados da nação senegalesa pois eles foram isolados por outro país: Gâmbia, uma faixa estreita de terra que divide Senegal em dois, separando a grande maioria uolof, ao Norte, dos Diola, ao sul.
Ecos de Dakar pretende buscar a nós mesmos na população do Senegal. Um pequeno retrato dos gestos e olhares do que somos. Um pequeno retrato do ser negro.
Para melhor compor os instantes revelados nas imagens de Ecos de Dakar, Marcelo Reis, curador e diretor desta exposição, e eu optamos por utilizar como legendas passagens do diário escrito por mim durante a viagem. O diário se comunica com a imagem quando revela impressões que não poderiam ser reescritas hoje, tais como os flagrantes revelados pelo obturador.
A trilha sonora é de autoria de Youssou N`Dour, um dos mais populares cantores e compositores senegaleses. Nos primeiros dias que estive em Dakar fui a um show dele em um estádio de futebol. Lotado, todos aguardaram durante horas a chegada do astro, já bastante conhecido na Europa e nas Américas. Foram mais de quatro horas de espera, com várias outras atrações. A sua entrada foi semelhante à sempre anunciada entrada do inesquecível James Brown em seus shows. Valeu a espera. Muita dança e alegria, como aconteceria durante toda a vigem. Uma música alegre, com belos arranjos e uma harmonia perfeita. Youssou N`Dour canta o panafricanismo: uma África livre, unida para todos os africanos espalhados pelo mundo.
Nesta viagem ao Senegal percebi que as ligações de um povo com outro não se manifestam apenas em elementos objetivos como a língua e a culinária, por exemplo, mas também na subjetividade inerente do gesto. Um olhar, um sorriso, uma forma de descansar a mão no colo, de apoiar o rosto. Ou mesmo nas formas do corpo. É como identificar no outro a si mesmo através de um giro leve da cabeça, que conduz o olhar para outra direção: identidades africanas.
Fonte consultada: http://www.planalto.gov.br/seppir/informativos/images25_ago2006/materia4.htm
*MÁRCIA GUENA é jornalista e mestre em Integração na América Latina, títulos obtidos na Universidade de São Paulo; professora das Faculdades Jorge Amado e doutoranda em História das Américas pela Universidade Complutense de Madrid.
2 comentários:
Estamos comunicando que este 'blog', MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO - MNU, foi 'linkado' na seção de campanhas em nosso portal ...
http://www.uff.br/peteconomia/
quando será votado esse tal direito da igualdade racial por que de tanta demora manos será que falta apoio,é isso tamos juntos falow!
dils.
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